ARGONALDO

A Filosofia Cotidiana Brasileira

Argonaldo é uma personagem criada pelo filósofo Sérgio Sá Júnior, que por caráter analítico, serve ao leitor uma base descomplicada das situações atuais em todos os âmbitos da vida brasileira.

sábado, 15 de maio de 2021

 

ARGONALDO

 

 SUPOSITÓRIO SEM COMPROVAÇÃO DE INEFICÁCIA CURA TUDO

 

 

Argonaldo Plotóteles reside na rua Gonzaga Bastos no bairro da Tijuca, cidade do Rio de Janeiro. É um homem de corpo magro, estatura média, cabelos grisalhos, olhos agudos e verdes, e um caráter demasiadamente sisudo. Já quase completaria os seus cinquenta e seis anos no mês de outubro, mas nunca fora coisa lá que desse importância maior. Morava sozinho em um apartamento do segundo andar e pouco conduzia a própria face para o lado de fora. Não era dotado de algum entusiasmo social; nunca fora. Por conseguinte, tampouco fazia juízo das afirmações alheias, pois ao mínimo de rumo sobre o assunto quando sua mente vagava, lhe chegava uma voz: verdades desinteressantes.

Era o dia doze de maio de dois mil e vinte um, e sentindo certo fastio após acompanhar as notícias sobre o país que se atola cada vez mais em escândalos absurdos, decidiu buscar um sanduíche no quiosque em frente ao Sesc. Era noite.

- Boa noite, senhor. - Cumprimentou-lhe o atendente.

- Boa noite. - Respondeu Argonaldo.

- Qual o pedido?

- Qual o maior sanduíche? A fome está gritando.

- “X-tudo”.

- Ok. Quero.

- Completo?

- Por favor.

Argonaldo sentou-se em um banquinho branco de plástico, muito comum nos quiosques. Aguardava calado, embebido em pensamentos diversos sobre arte e música, até que lhe despertou a voz do atendente:

- O senhor pode esperar só mais um pouco? Eu tenho que aprontar alguns pedidos para entregar.

Argonaldo respondeu positivamente meneando a cabeça. Retornaria aos pensamentos, mas o atendente disparava:

- Agora veja o senhor. Essa palhaçada de ficar trancafiado dentro de casa, e se não fosse meu “parça” meu “irmão” mesmo, nem sei como seria. A gente tem se virado assim, daqui a pouco ele passa aqui para fazer as entregas.

Argonaldo respondeu quase sussurrando:

- Complicado.

O atendente continuou:

- Olha não sei o senhor, mas vou te contar uma coisa... O presidente achou o remédio pra curar o vírus e a imprensa maldita falando que não serve. A gente dando duro, tendo que trabalhar e os “malandro” travando o pessoal em casa.

Argonaldo encarava o atendente que mantinha a face voltada para os pães repousados sobre a chapa.

- O senhor é bolsonarista? - Perguntou o atendente.

Argonaldo respirou profundamente e sentiu latejar as têmporas.

- Se eu quisesse um bichinho de estimação não seria um político, mas talvez um gato. São organizados e sempre sabemos onde fica a sua sujeira.

- Me desculpa aí, senhor. Eu só perguntei... Eu confio muito no presidente... A gente vê que é uma pessoa honesta.

- Claro... Nunca vi mais honesto... Falta muito?

- Tem mais três na sua frente, mas é rápido. O senhor não acha ele honesto não?

- O que eu acho ou deixo de achar irá te fazer refletir empiricamente ou racionalmente ou ambos? E sendo assim consideraria a sua posição mutável?

- Como assim? - O atendente desabrochou um leve sorriso.

- Nada. Esquece...

- Olha, eu não sei disso que o senhor falou aí não, mas só sei que aquilo que é certo é certo. O senhor vê aí, por exemplo, a cloroquina. Esse remédio já existe aí há muito tempo e é muito tempo mesmo. Nunca fez mal antes, mas só agora é que dá problema até no coração. E tem mais, não tem nada que diga, estudo nenhum dos cientistas aí que fale que ela, como diz aquele senador lá... Esqueci o nome dele... Tem “ineficância” contra o vírus.

- Ineficácia.

- Como?

- Você falou “ineficância” o correto é ineficácia. Aliás, os estudos que existem comprovam que a cloroquina não tem eficácia contra a Covid-19, o que significa que também prova a sua ineficácia contra o vírus.

- Como assim? Não entendi...

- Se não funciona, não pode servir. Entendeu?

- Não, mas calma aí. Uma coisa é ela não funcionar outra coisa é provar que ela não serve.

- Deus do céu! - Respondeu Argonaldo suavemente.

- O que não pode, e o senhor vai concordar comigo é as “pessoa” doente e não tem remédio pra tomar. Aí fica todo mundo na toca sem poder sair? Isso é crime, pô.

- Deixe-me ver se entendi. Pela sua ótica se um medicamento não tiver comprovação de ineficácia, independente da aplicação direta de tal medicamento, ou seja, independente de para qual doença o medicamento foi criado, testado e aprovado, ele também serve para outras patologias? É isso?

- Não, não. Deixa eu explicar melhor. Eu acho que, não tem remédio pra esse vírus aí, e não disseram que a cloroquina não deixa de funcionar. Por exemplo, disseram que a cloroquina não tem efeito sobre o vírus, mas não disseram que ela não deixa de ter. Entendeu agora? Se não tem nada e ninguém que diz que ela não deixa de funcionar e como não tem remédio, "vamo" tomar cloroquina. Entendeu?

- A bem da verdade, você é que não entende. Bom, vou tentar pela última vez. Imagine um quadro com uma linha riscada ao meio e de um lado pintado de preto e o outro branco. Imaginou?

- Sim, sim.

- Agora se percebemos, categoricamente, que um lado é preto e o outro branco, fica impossível afirmar que é possivel o contrário, pois como constestar que os lados estão invertidos pelo simples argumento de que nunca foi dito por ninguém que o preto não deixaria de ser branco? O que seria um equívoco crasso, tratando exclusivamente desse assunto. Se é preto e branco, então é preto e branco. E mesmo que viremos o quadro para que fique branco e preto, tanto um lado quanto o outro continuarão a ocupar os seus respectivos lugares. Nesse caso, não cabe o confronto filosófico, pois se trata de um exemplo para algo já estudado, já entendido - o medicamento em questão. Sendo, portanto, notório que para a conclusão basta identificar apenas um dos lados: se não tem eficácia, logo, é ineficaz; se é ineficaz, logo, não tem eficácia. Se é preto, logo, não é branco; se é branco, logo, não é preto.

- Agora realmente não entendi nada. Quadro preto e branco, vira do outro lado... Eita que confusão! Eu ainda continuo achando que se não falam nada, também sobre não funcionar, vale muito ter em casa.

- Você disse que o seu amigo ajuda nas entregas, não disse?

- Sim, sim.

- Sabe um remédio maravilhoso para ajudar na falta de dinheiro?

- Ah! Quem dera! Tem remédio pra isso não.

- Tem sim, e te mostro agora que tem.

- Qual é?

- Supositório.

- Ah, que isso! Aí é esculhambação com a minha cara.

- Claro que não! E digo mais, pois foi você mesmo que fez essa descoberta.

- Eu? Como?

- Ora! Supositório acaba de ser considerado um santo remédio para todos os males, inclusive a falta de dinheiro.

- Supositório não traz dinheiro não...

- Como você sabe se ninguém nunca disse que também não deixaria de trazer? Como não tem remédio para trazer dinheiro, use o supositório. Talvez se você enterrasse, uma caixa inteira no orifício designado, o resultado fosse mais rápido e mais opulento.

- Que que é opulento, cara...?

- Se você passar a sentar nos sanduíches também vai atrair mais clientes. Afinal, ninguém nunca disse que, também, não deixaria de atrair.

- Besteira...

- Nada disso. Suspenda o meu, pois perdi a fome.

- Que isso, senhor... O senhor ficou nervoso?

- Não. Eu não fiquei nervoso. Mas você precisa se perguntar que talvez sentando no sanduíche, eu teria cancelado?

- Acho que o senhor ficou nervoso...

- Nervoso não, mas cansado. Não deveria ter estendido tanto o assunto, mormente por saber que tais posições populares por não possuírem métodos analíticos mais refinados, mesmo que para um assunto tão simples, possuem um caráter imutável com conclusões absurdas e absorvidas pela falácia cotidiana. Bom...

Argonaldo fez um aceno com a mão e foi embora.

O atendente retribuiu o aceno e resmungou:

- Não entendi nada do que esse maluco falou. Aposto que “tava fumado”. Maluco ficou nervoso por nada... Supositório é o c...

 

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