ARGONALDO
ARGONALDO
SUPOSITÓRIO SEM COMPROVAÇÃO DE INEFICÁCIA CURA TUDO
Argonaldo Plotóteles reside na rua Gonzaga Bastos no bairro da Tijuca, cidade do Rio de Janeiro. É um homem de corpo magro, estatura média, cabelos grisalhos, olhos agudos e verdes, e um caráter demasiadamente sisudo. Já quase completaria os seus cinquenta e seis anos no mês de outubro, mas nunca fora coisa lá que desse importância maior. Morava sozinho em um apartamento do segundo andar e pouco conduzia a própria face para o lado de fora. Não era dotado de algum entusiasmo social; nunca fora. Por conseguinte, tampouco fazia juízo das afirmações alheias, pois ao mínimo de rumo sobre o assunto quando sua mente vagava, lhe chegava uma voz: verdades desinteressantes.
Era o dia doze de maio de dois mil e vinte um, e sentindo certo fastio após acompanhar as notícias sobre o país que se atola cada vez mais em escândalos absurdos, decidiu buscar um sanduíche no quiosque em frente ao Sesc. Era noite.
- Boa noite, senhor. - Cumprimentou-lhe o atendente.
- Boa noite. - Respondeu Argonaldo.
- Qual o pedido?
- Qual o maior sanduíche? A fome está gritando.
- “X-tudo”.
- Ok. Quero.
- Completo?
- Por favor.
Argonaldo sentou-se em um banquinho branco de plástico, muito comum nos quiosques. Aguardava calado, embebido em pensamentos diversos sobre arte e música, até que lhe despertou a voz do atendente:
- O senhor pode esperar só mais um pouco? Eu tenho que aprontar alguns pedidos para entregar.
Argonaldo respondeu positivamente meneando a cabeça. Retornaria aos pensamentos, mas o atendente disparava:
- Agora veja o senhor. Essa palhaçada de ficar trancafiado dentro de casa, e se não fosse meu “parça” meu “irmão” mesmo, nem sei como seria. A gente tem se virado assim, daqui a pouco ele passa aqui para fazer as entregas.
Argonaldo respondeu quase sussurrando:
- Complicado.
O atendente continuou:
- Olha não sei o senhor, mas vou te contar uma coisa... O presidente achou o remédio pra curar o vírus e a imprensa maldita falando que não serve. A gente dando duro, tendo que trabalhar e os “malandro” travando o pessoal em casa.
Argonaldo encarava o atendente que mantinha a face voltada para os pães repousados sobre a chapa.
- O senhor é bolsonarista? - Perguntou o atendente.
Argonaldo respirou profundamente e sentiu latejar as têmporas.
- Se eu quisesse um bichinho de estimação não seria um político, mas talvez um gato. São organizados e sempre sabemos onde fica a sua sujeira.
- Me desculpa aí, senhor. Eu só perguntei... Eu confio muito no presidente... A gente vê que é uma pessoa honesta.
- Claro... Nunca vi mais honesto... Falta muito?
- Tem mais três na sua frente, mas é rápido. O senhor não acha ele honesto não?
- O que eu acho ou deixo de achar irá te fazer refletir empiricamente ou racionalmente ou ambos? E sendo assim consideraria a sua posição mutável?
- Como assim? - O atendente desabrochou um leve sorriso.
- Nada. Esquece...
- Olha, eu não sei disso que o senhor falou aí não, mas só sei que aquilo que é certo é certo. O senhor vê aí, por exemplo, a cloroquina. Esse remédio já existe aí há muito tempo e é muito tempo mesmo. Nunca fez mal antes, mas só agora é que dá problema até no coração. E tem mais, não tem nada que diga, estudo nenhum dos cientistas aí que fale que ela, como diz aquele senador lá... Esqueci o nome dele... Tem “ineficância” contra o vírus.
- Ineficácia.
- Como?
- Você falou “ineficância” o correto é ineficácia. Aliás, os estudos que existem comprovam que a cloroquina não tem eficácia contra a Covid-19, o que significa que também prova a sua ineficácia contra o vírus.
- Como assim? Não entendi...
- Se não funciona, não pode servir. Entendeu?
- Não, mas calma aí. Uma coisa é ela não funcionar outra coisa é provar que ela não serve.
- Deus do céu! - Respondeu Argonaldo suavemente.
- O que não pode, e o senhor vai concordar comigo é as “pessoa” doente e não tem remédio pra tomar. Aí fica todo mundo na toca sem poder sair? Isso é crime, pô.
- Deixe-me ver se entendi. Pela sua ótica se um medicamento não tiver comprovação de ineficácia, independente da aplicação direta de tal medicamento, ou seja, independente de para qual doença o medicamento foi criado, testado e aprovado, ele também serve para outras patologias? É isso?
- Não, não. Deixa eu explicar melhor. Eu acho que, não tem remédio pra esse vírus aí, e não disseram que a cloroquina não deixa de funcionar. Por exemplo, disseram que a cloroquina não tem efeito sobre o vírus, mas não disseram que ela não deixa de ter. Entendeu agora? Se não tem nada e ninguém que diz que ela não deixa de funcionar e como não tem remédio, "vamo" tomar cloroquina. Entendeu?
- A bem da verdade, você é que não entende. Bom, vou tentar pela última vez. Imagine um quadro com uma linha riscada ao meio e de um lado pintado de preto e o outro branco. Imaginou?
- Sim, sim.
- Agora se percebemos, categoricamente, que um lado é preto e o outro branco, fica impossível afirmar que é possivel o contrário, pois como constestar que os lados estão invertidos pelo simples argumento de que nunca foi dito por ninguém que o preto não deixaria de ser branco? O que seria um equívoco crasso, tratando exclusivamente desse assunto. Se é preto e branco, então é preto e branco. E mesmo que viremos o quadro para que fique branco e preto, tanto um lado quanto o outro continuarão a ocupar os seus respectivos lugares. Nesse caso, não cabe o confronto filosófico, pois se trata de um exemplo para algo já estudado, já entendido - o medicamento em questão. Sendo, portanto, notório que para a conclusão basta identificar apenas um dos lados: se não tem eficácia, logo, é ineficaz; se é ineficaz, logo, não tem eficácia. Se é preto, logo, não é branco; se é branco, logo, não é preto.
- Agora realmente não entendi nada. Quadro preto e branco, vira do outro lado... Eita que confusão! Eu ainda continuo achando que se não falam nada, também sobre não funcionar, vale muito ter em casa.
- Você disse que o seu amigo ajuda nas entregas, não disse?
- Sim, sim.
- Sabe um remédio maravilhoso para ajudar na falta de dinheiro?
- Ah! Quem dera! Tem remédio pra isso não.
- Tem sim, e te mostro agora que tem.
- Qual é?
- Supositório.
- Ah, que isso! Aí é esculhambação com a minha cara.
- Claro que não! E digo mais, pois foi você mesmo que fez essa descoberta.
- Eu? Como?
- Ora! Supositório acaba de ser considerado um santo remédio para todos os males, inclusive a falta de dinheiro.
- Supositório não traz dinheiro não...
- Como você sabe se ninguém nunca disse que também não deixaria de trazer? Como não tem remédio para trazer dinheiro, use o supositório. Talvez se você enterrasse, uma caixa inteira no orifício designado, o resultado fosse mais rápido e mais opulento.
- Que que é opulento, cara...?
- Se você passar a sentar nos sanduíches também vai atrair mais clientes. Afinal, ninguém nunca disse que, também, não deixaria de atrair.
- Besteira...
- Nada disso. Suspenda o meu, pois perdi a fome.
- Que isso, senhor... O senhor ficou nervoso?
- Não. Eu não fiquei nervoso. Mas você precisa se perguntar que talvez sentando no sanduíche, eu teria cancelado?
- Acho que o senhor ficou nervoso...
- Nervoso não, mas cansado. Não deveria ter estendido tanto o assunto, mormente por saber que tais posições populares por não possuírem métodos analíticos mais refinados, mesmo que para um assunto tão simples, possuem um caráter imutável com conclusões absurdas e absorvidas pela falácia cotidiana. Bom...
Argonaldo fez um aceno com a mão e foi embora.
O atendente retribuiu o aceno e resmungou:
- Não entendi nada do que esse maluco falou. Aposto que “tava fumado”. Maluco ficou nervoso por nada... Supositório é o c...
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