ARGONALDO

A Filosofia Cotidiana Brasileira

Argonaldo é uma personagem criada pelo filósofo Sérgio Sá Júnior, que por caráter analítico, serve ao leitor uma base descomplicada das situações atuais em todos os âmbitos da vida brasileira.

sábado, 19 de junho de 2021

Tudo começou durante a pandemia. A volta às aulas presenciais me deixou extremamente ansiosa e com receio de voltar a me expor nas ruas - após quase 9 meses de quarentena e aulas online.

Comecei a ter palpitações, arritmias e taquicardias. Pela primeira vez, em 37 anos, tive a necessidade de procurar um cardiologista. Logo eu que quase nunca preciso de médico - exceto o psiquiatra - mas isto é assunto para um outro post.

Iniciou-se a busca por um cardiologista que atendesse pelo plano e tivesse uma indicação, pois não queremos ser tratados por “qualquer um”. Instagram, Facebook, amigos, família… Ninguém me deu uma indicação satisfatória. Vamos, portanto, apelar para uma grande amiga minha e do universo: a aleatoriedade. 

Os algoritmos de busca dos aplicativos de plano de saúde são óbvios e intuitivos. Filtre, por favor: cardiologia, raio de 5 km do meu local de trabalho. O resultado saiu em ordem alfabética: Doutor Adriano. Como pessoa prática que sou, decidi de forma bem direta: é nesse mesmo que eu vou. 

Telefono pra secretária. Nossa, que coincidência! (Não acredito em coincidências, mas isso eu explico em outro post) 

  • Temos uma desistência amanhã de manhã. 7:30. Você quer marcar? É primeira vez?

Penso mais uma vez: Nossa, que sincronicidade! Eu estou buscando incessantemente um cardiologista e encontro um a duas quadras do meu trabalho, com horário livre amanhã. Topei na hora.

Na manhã seguinte, cheguei ao consultório. Dr. Adriano era um homem alto, magro, grisalho, muito carinhoso e parecia um profissional muito competente e comprometido com seus pacientes. Ele me ouve atentamente durante quase 40 minutos, (estranho para um atendimento de plano de saúde, não acham?) pergunta sobre toda a minha vida - inclusive tópicos muito pessoais - e faz o pedido de diversos exames. Vários deles ligados à cardiologia e um em especial: uma análise completa de hormônios e marcadores inflamatórios. Agendo a próxima consulta para dali a três semanas.

Com todos os resultados dos exames em mãos, cheguei no consultório, ansiosa, três semanas depois. O veredicto é dado:

  • Olha, você não tem absolutamente nada no coração. Sua questão é puramente psicológica. Porém, há muitas alterações nos seus exames de sangue. Se você não mudar sua alimentação, em breve você irá adoecer.

Começo a chorar. Sim, sou uma pessoa dramática. “Exagerado / jogado aos seus pés / eu sou mesmo exagerado…”. Pergunto a ele: 

  • Que tipo de mudança? O que eu preciso fazer para ficar saudável?

  • Abandone óleos vegetais, glúten, grãos, açúcar, alimentos industrializados e processados. Coma #comidadeverdade. Vou receitar alguns suplementos. Retorne daqui a 2 meses.

Saí do consultório com um misto de sensações: medo e determinação. Fui direto à farmácia de manipulação encomendar os tais suplementos. Em menos de três semanas eu estava dormindo melhor, o humor havia melhorado e eu não me sentia tão bem disposta desde os meus 20 e poucos anos. Uma coisa é inegável: Doutor Adriano é um excelente profissional, apesar de seu péssimo caráter como homem. (OOPS, Spoiler alert!)

Eu, como nerd diligente e curiosa conscienciosa, me debrucei sobre o assunto. Dieta paleo, dieta cetogênica, dieta carnívora, os benefícios de retirar os grãos e o açúcar da alimentação e praticar atividades físicas pelo menos 3 vezes por semana. Toda vez que tinha dúvidas, enviava mensagens privadas para o Dr. Adriano no seu perfil do Instagram. Ele, sempre muito atencioso e disposto a ajudar, respondia prontamente. Prontamente até demais, pensei: “Esse cara é viciado em Instagram”.

E era viciado mesmo. Me marcava em todos os posts dele, comentava todos os meus stories, agradecia em segundos toda vez que eu curtia alguma publicação dele. Comecei a achar aquilo esquisito. Ele me mandava mensagens aleatórias, por exemplo: “Olá, jovem, como você está?” 

Comecei a achar aquilo cada vez mais incomum. Elogiava meu corpo, meu rosto, minha educação, minha inteligência, meu bom humor, dizia que eu era uma pessoa encantadora. A minha inocência e meu romantismo falaram mais alto: “Acho que ele se apaixonou por mim”. Além disso, após uma separação recente, que mulher não gosta de ser cortejada? Aquilo estava me fazendo bem para a autoestima e para o ego. Um amigo logo sinalizou: ele não usa aliança. Pronto. Eu estava oficialmente flertando com o meu cardiologista.

Conversa vai, conversa vem, faço a pergunta que não queria calar: 

  • “Doutor Adriano, você é comprometido?

  • Sim.

  • Bom, paramos por aqui então. Me relacionar com homens comprometidos não faz parte dos meus princípios.

  • Compreendo.

Conto pras amigas. Mulher é assim: as amigas acompanham os flertes que nem série. Alguns flertes têm apenas uma temporada; outros, várias. Este era o final da primeira temporada da série “Doutor Adriano”. O julgamento das amigas é (quase) unânime: "Fez certo. Ele é um filha da puta!"

Apenas uma amiga fez um julgamento diferente: “Não tenho estes julgamentos… considero as coisas bem mais complexas do que parecem… principalmente no que concerne estas situações tão fortemente ligadas ao patriarcado (...) A monogamia é estreitamente ligada ao patriarcado, criada em processos sociais para manter heranças, etc. O amor romântico é bem mais recente, e, ainda assim, não garante fidelidade. Uma mulher que topa ser a outra pode ser uma mulher de boas com a vida dela. Livre. O cara é apenas mais um. Ou não. Pode ser uma mulher apaixonada que está OK em ter o cara em alguns momentos e não todos. É tudo muito amplo. Há muitas possibilidades. Tem esposa que está com homem que não é honesto com ela e sabe disso, não fala nada para não ser abandonada.”

A vantagem de você ter uma amiga de humanas inteligentíssima e de mente aberta é que ela abre os seus olhos para diferentes pontos de vista. Para quem não me conhece, aí vai uma breve análise psicológica da minha pessoa: 

Meus pais vivem em um casamento família funcional da década de 60 há quase 40 anos. Sou filha única. Meu pai, machista, descendente de calabreses, provedor, não sabe nem fritar um ovo e depende da minha mãe para servir as refeições. Não lava um copo, chega em casa do trabalho, pega o controle remoto, assiste televisão até a hora de dormir. Minha mãe, dona de casa, nunca trabalhou, casou virgem com 20 anos, depende do meu pai pra comprar calcinha. Eu: criação tradicional, fora da realidade da minha geração, estudei em escola católica, depois militar, superprotegida, matemática, cartesiana.

Aquela amiga de humanas me fez desconstruir, em poucos dias, tudo aquilo que minha família incutiu na minha cabeça durante anos. Fui estudar, como sempre faço.

“A poligamia é natural ao ser humano e a monogamia foi criada por imposição para a mulher”, disse o investigador português Rui Diogo. “Se a monogamia fosse natural não tinhamos que fazer leis e matar pessoas por causa da poligamia. Não há fundamentos biológicos para a monogamia, nenhuma espécie na natureza é monogâmica. As fêmeas dos chimpanzés, que se assemelham ao ser humano, relacionam-se com uma média de oito machos por mês. A poligamia acontece hoje em todas as tribos da Amazônia. O machismo e a diferença entre gêneros fazem parte do passado recente da humanidade. 90% da comida era providenciada pela mulher no tempo dos humanos caçadores-coletores, e, com a agricultura e as religiões surgiu a imposição da monogamia, mas apenas para a mulher. 

Com a agricultura surge o conceito de propriedade. Os meus animais, a minha colheita. E surge a herança. Eu tenho de ter a certeza absoluta de que o filho é meu. A partir da agricultura, a mulher torna-se uma propriedade (...) A própria aliança de casamento começou a ser um símbolo de que a mulher tinha dono. Após cinco anos de casamento (exatamente o tempo que o meu durou) os estudos indicam que a oxitocina (ligada à paixão) acaba e a testosterona (hormônio masculino) aumenta. Fisiologicamente, não há relaçao entre amor e sexo, pode-se amar alguem e desejar outra pessoa, e isso, pelo menos, aplica-se ao homem e à mulher.”

Caro leitor, não se apavore neste momento. Eu não pensei em virar chimpanzé e ter 8 parceiros sexuais diferentes no mês. Apenas fui buscar bases científicas que justificassem a minha vontade de me relacionar com o meu cardiologista - mesmo tendo valores e princípios éticos contrários. Voltando à história…

O médico continuava comentando e mandando mensagens privadas, mesmo após o meu basta. Decidida a seguir meus instintos primitivos e passar por cima da educação dada pelos meus pais caretas, continuei as conversas proibidas com Doutor Adriano. Vivíamos um mini-namoro através do Instagram e do WhatsApp. Ele me mandava Bom dia, Boa tarde, Boa noite, mandava fotos da filha, áudios e contava como estava sendo o dia dele. Eu estava me achando incrível. Afinal, havia dado um pé na bunda de um cara imaturo e dependente financeiramente de mim e me relacionando com um médico 11 anos mais velho que eu. Não sou o máximo??

Porém, este autocontrole psicológico não durou muito tempo. Pra quem não me conhece, vai um pouco mais sobre mim: eu faço terapia há quase 20 anos. Estudo neurociência. Ao longo deste tempo, descobri que tenho um traço de personalidade chamado amabilidade, o que se contrapõe ao traço de combatividade. Em palavras mais simples: a famosa dificuldade de dizer não. 

É muito tentador ser amante de um cara como o Dr. Adriano. Mas será que partia de um sentimento genuíno de minha parte? Ou eu estava apenas gostando de ser assediada e fazer algo “errado”, que meu pai certamente condenaria e eu seria apedrejada tal qual Maria Madalena? Essa reflexão me tirou umas duas noites de sono. E eu comecei a ponderar se esse tal affair estava sendo benéfico para a minha saúde mental, que já não é lá das melhores. 

Sabendo dos potenciais perigos de se perder o sono - quem é bipolar sabe - decidi voltar a olhar pra dentro de mim mesma e esquecer o tal artigo científico sobre monogamia/poligamia e biologia evolutiva. E daí que as tribos da Amazônia são poligâmicas? Eu vivo no mundo pós revolução industrial do século XXI. Casei duas vezes, já usei 4 alianças diferentes, mas, moro sozinha e não dependo de homem pra pagar minhas contas. Achei que estava fazendo tudo errado. Desisti de virar amante.

Soma-se a isso tudo um outro traço de personalidade marcante em mim: eu sou extremamente empática. Me coloquei no lugar da namorada/esposa/companheira do médico. Eu detestaria ser traída. Como feminista, eu tenho que defender as mulheres.

Coincidentemente (mais uma vez, sincrônicamente), este foi o dia anterior à consulta. Eu havia acordado às 2:30 da manhã de tanta ansiedade que eu estava. Levantei da cama, fui até o meu escritório e escrevi uma carta (sim, carta, papel, caneta, envelope) para o médico. Expondo meu ponto de vista sobre adultério, falando sobre a empatia que sinto pela companheira dele, e, finalmente, pedindo que ele parasse de me enviar mensagens privadas. Respirei fundo, fechei o envelopinho com um durex e coloquei a carta dentro da mochila, juntamente com a receita de suplementos.

Ao chegar na sala de espera do consultório, o outro paciente havia chegado antes de mim. Mas o médico me chamou primeiro (feio, né?). Entrei no consultório e ele veio me abraçar, como na última consulta. Aproveitando o contexto da pandemia, respondi o convite de abraço com uma cotovelada. Pedi minhas receitas e meus pedidos de exame de sangue. Enquanto ele escrevia, percebi que seu olhar às vezes me encarava com uma cara de ponto de interrogação. Quando ele terminou de escrever tudo, ficou mudo e eu disse:

  • Não posso demorar. Tenho que ir pro trabalho.

  • Eu sei.

  • Como não consigo falar, eu escrevi. 

Entreguei o envelope para ele e saí rapidamente do consultório. Na recepção, marquei com a secretária a próxima consulta, dali a 90 dias. 

Alguns minutos depois, recebo uma mensagem privada no Instagram. Era ele, prometendo não mais enviar mensagens. Desde então, só nos comunicamos publicamente através de posts no Instagram.

Como cantava Elis Regina: 

“Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo, tudo / Tudo o que fizemos / Nós ainda somos os mesmos / E vivemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos como os nossos pais.”

Estudar biologia evolutiva, antropologia e História não conseguiu sobrepor os princípios incutidos há tanto tempo na minha psique. E Doutor Adriano continua sendo apenas um cardiologista com tendências poligâmicas viciado em Instagram. E eu? Bom, eu só aprendi conteúdos novos. 




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